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Será que a Habitação precisa de Medidas Liberais?

Será que a habitação precisa de medidas liberais?

Há muitas pessoas que acham que o problema da habitação se resolve com medidas liberais ou que estamos em crise por causa do “socialismo”. Mas será que isto é verdade?

Vejamos algumas das leis que foram implementadas na habitação nos últimos governos:

2009, durante o governo do PS:

Regime dos residentes não habituais: isenções nos impostos para reformados ricos de outros países europeus que estejam em Portugal um mínimo de 183 dias.

Consequências: Aumento da especulação imobiliária, aumento dos preços, desequilíbrio entre o poder de compra de quem trabalha em Portugal, investimento imobiliário estrangeiro e muitas casas vazias devido à deficiente fiscalização da ocupação mínima anual das habitações. *

2009, durante o governo do PS:

Regime Jurídico da Reabilitação Urbana: atração de fundos imobiliários para reabilitação através de benefícios fiscais.

Consequências: aumento da especulação, aumento de reabilitação para turismo (hotéis, apartamentos de luxo, alojamento local e muitas casas vazias transmutadas de “habitação” em “depósito financeiro de baixo risco e elevado rendimento”).

2012, durante o governo do PSD:

“Lei Cristas”: liberalização do mercado de arrendamento.

Consequências: aumento das rendas, expulsão de moradores, caducidade nos contratos, contratos instáveis e criação de uma sensação de incerteza e medo entre muitos moradores (especialmente os de maior idade).

2012, durante o governo do PSD:

Autorização de Residência para Investimento (Vistos Gold): venda de cidadania para investidores fora da UE que compram casas.

Consequências: aumento da especulação imobiliária, aumento dos preços, desequilíbrio entre o poder de compra de quem trabalha em Portugal e investimento imobiliário estrangeiro. *

2014, durante o governo do PSD:
Lei do Alojamento Local (AL): a figura do AL passa a ser uma categoria autónoma com um tratamento jurídico próprio diferente dos outros empreendimentos turísticos.

Consequências: aumento descontrolado do número de casas a serem usadas para alojamento turístico, aumento da especulação imobiliária, aumento dos preços, descaracterização de bairros inteiros (disneyficação) e expulsão de moradores das zonas históricas.

2019, durante o governo PS:

Regime das Sociedades de Investimento e Gestão Imobiliária (SIGI): benefícios para grandes fundos imobiliários de arrendamento.

Consequências: concentração de propriedade em grandes fundos imobiliários, aumento do desequilíbrio de poder entre grandes senhorios e arrendatários, aumento da especulação imobiliária e muitos despejos.

2023, durante o governo PS:

Lei de Bases Gerais da política pública de solos, de ordenamento do território e de urbanismo: liberalização dos solos para mais construção.

Consequências: devastação de ecossistemas, mais emissão de gases com efeito de estufa, mais especulação imobiliária.

Estas medidas são as verdadeiras responsáveis pela crise de habitação que se foi agudizando ano após ano. Respondem a lógicas neoliberais, profundamente individualistas, que defendem o mercado livre e a baixa intervenção do Estado na economia. Foram impulsionadas, em Portugal, com a chegada da Troika e impregnaram todas as áreas da nossa vida, exercendo uma hegemonia cultural que é difícil de contrariar. Assim, muitas vezes ouvimos coisas como: “com a minha propriedade faço o que eu quiser”, “é um problema de oferta”, “é preciso estimular o mercado” ou “o que precisamos é de mais construção”. Longe de serem factos inquestionáveis, são opiniões de quem já não consegue pensar fora da lógica liberal ou de quem quer esconder as verdadeiras causas do problema por interesses particulares (os seus negócios!).

Acreditar que a solução para o problema da habitação está no mercado livre é um erro que a realidade de Lisboa consegue muito bem exemplificar. Quando o Estado deixa de controlar as rendas, cria políticas como as que exemplificámos acima:

  • dinamizar o mercado;
  • impulsionar a entrada de capital estrangeiro e de pessoas com elevado poder de compra;
  • permitir que senhorios e investidores mudem livremente a função das suas propriedades (de uso habitacional para turístico, designadamente).

O mercado orienta-se para aumentar o lucro destes senhorios e investidores e não para cobrir as necessidades de quem precisa de casa para morar.
Em Lisboa, mais de 20.000 casas deixaram de cumprir a função para a que foram criadas (habitação!) e estão a ser usadas como Alojamento Local só para obter maiores rendimentos, expulsando pessoas e turistificando os bairros até limites insuportáveis: Santa Maria Maior tem 67% de AL e a freguesia da Misericórdia, 50%(2). Apesar da alegada “reabilitação” de casas devolutas, Lisboa perdeu população no últimos censos(3) e, em 2023, converteu-se na cidade europeia mais cara para arrendar casa(4).

No Movimento Referendo pela Habitação pensamos que qualquer escolha pessoal sobre uma propriedade influencia e altera o espaço social de todas as pessoas e é por isso que nos opomos fortemente às ideias que sustentam o neoliberalismo. Vivemos em sociedade e as decisões que afetam todas as pessoas devem ser tomadas com base no bem comum e não em interesses particulares.
Desta forma, não podemos defender a construção de mais casas e favorecer os interesses do setor da construção quando há casas suficientes e quando é uma das atividades mais poluentes. Antes de poluir mais o planeta e dificultar a vida de milhões de pessoas que vão sofrer com os efeitos das alterações climáticas, temos de defender a função social da habitação: todas as casas que foram construídas para habitação têm de ser habitadas e não usadas para turismo ou deixadas ao abandono como forma de investimento financeiro totalmente especulativo!
Independentemente de quem são os proprietários, de que nos servem bairros bonitos se estes não podem ser habitados por moradores, se não têm serviços ou espaços de convívio e cultura? Ser proprietário de uma habitação vem também com uma responsabilidade social.
As propriedades estão em bairros, em cidades e num planeta que nos pertencem a todas e as atividades que cada um faz na sua propriedade têm um impacto na vida de outras pessoas e na sociedade no seu conjunto. O direito de propriedade não é um direito absoluto, mas um direito que é exercido em harmonia com outros direitos constitucionalmente consagrados.
É fácil comprovar a falácia da expressão "com a minha propriedade faço o que eu quiser", considerando a existência de leis como o Regulamento Geral do Ruído, que impede que alguém na sua casa possa incomodar os vizinhos a certa horas; regulamentos que não permitem que se possa abrir um café no nosso apartamento só porque é nosso; ou, por fim, acórdãos como o do próprio Supremo Tribunal de Justiça de 2022, que determinou que o AL não tem cabimento em casas destinadas à habitação.
Achamos cínico que alguns senhorios e grupos de interesses ligados à especulação imobiliária e ao Lobby do Alojamento Local defendam a não intervenção do Estado só quando não convém ao seu negócio porque, na realidade, houve benefícios do Estado para a reabilitação e a própria Associação do Alojamento Local em Portugal (ALEP) pediu apoio para os senhorios durante a Pandemia(5), sem considerar os altos benefícios que tiveram nos anos anteriores. Também não vimos estas organizações a reclamar sobre os diferentes benefícios fiscais que atraem pessoas com maior nível aquisitivo, nem dos subsídios às rendas, que são claramente intervenções do Estado no mercado que jogam a favor dos senhorios, subsidiando os preços especulativos e impedindo as rendas de baixar pela simples lei da oferta e da procura.
O neoliberalismo só funciona para quem já tem privilégios: herdou uma casa, uma empresa, teve uma boa educação, um bom emprego, uma família estruturada, acesso a cuidados de saúde, não sofreu discriminação de qualquer tipo e, por tudo isto, teve capacidade para poupar, investir, pedir um empréstimo bancário, etc.
Por tudo isto, desconfia de quem te diz que na habitação o que são precisas são medidas liberais porque já foram aplicadas e tiveram um resultado catastrófico. E também de quem te fala de "socialismo" porque, infelizmente, muitas das políticas de habitação neoliberais foram aplicadas por governos do PS, que têm cedido à pressão dos setores mais abastados(6) como, sobretudo, o Lobby do AL, tendo apenas implementado algumas medidas paliativas para proteger aos inquilinos (como o apoio às rendas do Mais Habitação) à custa do erário público e em momento muito tardio quando o problema da habitação já tinha tomado proporções catastróficas.
O chamado “Estado Social” continua a ser debilitado, não apenas na habitação, mas na educação ou na saúde, favorecendo interesses privados e não o bem comum.
Não podemos deixar que isto aconteça. Junta-te a nós! 

*Estas duas medidas acabaram em outubro de 2023, verificando-se, no fim do ano, um arrefecimento da procura de casa por estrangeiros(1)

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