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A cidade que quer ser ouvida                 

  • 15.01.2025

A cidade que quer ser ouvida

No dia 3 de janeiro de 2025, o Tribunal Constitucional (TC) publicou o primeiro acórdão do ano: o relatório de verificação preventiva da legalidade e constitucionalidade da realização de um referendo local, por iniciativa popular, para alteração do Regulamento Municipal do Alojamento Local no sentido de cancelar os alojamentos locais registados em imóveis destinados à habitação - isto é, devolver estas casas à sua função social: serem habitadas.

Os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional decidiram chumbar taxativamente aquele que seria o primeiro referendo por iniciativa popular da democracia portuguesa, por unanimidade, tendo Mariana Canotilho e Afonso Patrão escrito duas declarações de voto que expressam desacordo e se afastam de parte da fundamentação do relatório.

Consideramos que este chumbo é, acima de tudo, uma decisão política, que reflete, na sua interpretação da lei e da Constituição, a incapacidade das instituições em reconhecer e responder à gravidade da crise habitacional que assola o país.

O Tribunal Constitucional faz uma leitura errada da realidade. Afirma, no texto do presente acórdão, que o problema da habitação está diretamente ligado à “administração da escassez” de espaços para habitar: “Com efeito, é a falta dramática de espaços para habitação que expressa a dimensão da realidade”. No entanto, sabemos que no universo de Lisboa, em que mais de 19.000 casas são afetas a Alojamento Local, não existe um problema de escassez, mas sim de uso. Há casas de sobra para toda a gente. De acordo com os últimos dados da OCDE (de 2021 ou posteriores), Portugal é um dos países com mais casas por habitante, e o país com mais casas desocupadas quando se inclui alojamento local, que representa mais do que 60% deste universo. O problema é que elas não estão ao serviço dos habitantes, mas de uma atividade económica que nos empurra para fora da cidade.

Em nenhuma linha do Acórdão se faz menção à função social da habitação, preceito consagrado no artigo 4.º da Lei de Bases da Habitação e basilar a esta proposta de referendo. Não é um mero esquecimento, é uma opção ideológica.

O alojamento é local, mas não se pode agir localmente sobre ele!

O Tribunal Constitucional entende que os municípios não têm competência para proibir alojamentos locais em imóveis destinados à habitação, baseando a sua interpretação quase exclusivamente nas últimas alterações à lei nacional do Alojamento Local, que, ao reforçarem a posição daqueles que exploram estabelecimentos de alojamento local, se traduzem numa afronta à função social da habitação.

Até Outubro de 2024, explorar um alojamento local em fração com uso habitacional era ilegal, por violação da norma do Código Civil (alínea c) do nº 2 do artigo 1422.º) que veda aos seus proprietários a possibilidade de “dar-lhe uso diverso do fim a que é destinada”. No entanto, apesar da ilegalidade, a realidade era - e é, como sabemos - outra! Desde 2019, em Lisboa, o Regulamento Municipal do Alojamento Local (RMAL) dita que os alojamentos locais só podem ser explorados se os imóveis tiverem licença de utilização habitacional, apesar de o Regime Jurídico da Exploração dos Estabelecimento de Alojamento Local não o exigir - nem à data, nem agora. Estas incompatibilidades deram aso a processos judiciais, que foram sendo decididos em sentido diverso: ora considerando que alojamento local não era incompatível com habitar uma casa, ora decidindo pela incompatibilidade. Assim, em Abril de 2022, o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão n.º 4/2022, uniformizou a jurisprudência com o objetivo de colocar fim a estas contradições, donde resultou que explorar um alojamento local numa fração que se destina a habitação é incompatível com esse fim.

Com vista a ultrapassar este entendimento, o actual Governo apressou-se a mudar a lei, de modo a que explorar uma alojamento local numa fracção seja compatível com habitar essa fração, constrangendo o poder de decisão de municípios e condóminos sobre matéria de AL. Entendemos, no entanto, que estas recentes alterações legais enfrentam normas do Código Civil e da Constituição: no contexto actual de crise no acesso à habitação, explorar, num imóvel destinado à habitação, uma actividade económica, além de constituir uso diverso a que foi afetada, é contrário ao fim social e económico do direito de propriedade privada. Legitimar este quadro legislativo é negar a função social inerente ao direito de propriedade privada; é negar o interesse colectivo em detrimento de interesses individuais, movidos exclusivamente pela obtenção de lucro.

O conteúdo do acórdão do TC torna claro que, embora "o alojamento seja local", não se pode agir localmente sobre ele, pelo menos não de uma forma que produza mudanças reais e efetivas nas vidas das pessoas e na cidade. O que não compreendemos nem aceitamos, uma vez que a atividade de Alojamento Local, ao se tratar de um assunto de interesse local, deve ter a sua regulamentação decidida pelos órgãos autárquicos municipais ou de freguesia, estando integrada nas suas competências, ainda que partilhadas. O próprio Regime Jurídico da Exploração dos Estabelecimento de Alojamento Local confere aos municípios poder regulamentar, cabendo-lhes concretizar qual a licença de utilização que os imóveis devem ter para que lá se possa explorar um Alojamento Local. Apesar das mais recentes alterações, os municípios continuam a poder exigir qual a licença de utilização de um imóvel mais adequada ao exercício desta atividade económica (com exceção, sabemos, da modalidade de Alojamento Local explorada em quartos).

O referendo local por iniciativa popular foi uma ferramenta criada sem intenção de ser usada? Excessos burocráticos dificultam acesso à democracia participativa

A decisão do TC também aponta para erros processuais que não podem ser imputados a cidadãos que tentam trilhar um caminho nunca antes percorrido na democracia portuguesa.

Nomeadamente:

  • A falta de identificação dos mandatários nas folhas de assinaturas, uma exigência que não está inequívoca e expressamente prevista no Regime Jurídico do Referendo Local e que, em consulta prévia, a Comissão Nacional de Eleições afirmou ao movimento não ser necessária.

  • A falta de verificação das assinaturas em momento prévio à deliberação na Assembleia Municipal de Lisboa que aprovou a realização do referendo local, procedimento da responsabilidade daquele órgão.

  • A falta de um parecer do Presidente da CML, que deveria ter sido solicitado também pela AML, dado que as perguntas propostas versam sobre questões da sua competência.

Este acórdão expõe, ainda, a fragilidade do referendo local enquanto instrumento democrático. Para além de estar sujeito a uma carga burocrática excessiva (por exemplo, as assinaturas só podem ser recolhidas à mão, estando sujeitas ao erro humano e aos efeitos do tempo - eleitores que falecem ou mudam de residência entre a assinatura e o ato de entrega da proposta), enfrenta a volatilidade legislativa do Governo (a lei nacional que quis retirar poder de decisão aos municípios em matéria de AL foi aprovada duas semanas antes da entrega de assinaturas à AML por parte do MRH) e a necessidade de apoio jurídico especializado — algo inacessível para a maioria da população. Parece que o referendo local por iniciativa popular foi uma ferramenta criada sem intenção de que pudesse ser realmente usada. Desta forma, cria-se um entrave à participação e iniciativa populares em questões fundamentais para a vida dos cidadãos.

Sobre convite da Assembleia Municipal de Lisboa de reformulação da proposta de referendo

A Presidente da Assembleia Municipal de Lisboa deu oportunidade de reformulação da proposta do Referendo pela Habitação para ser submetida novamente ao Tribunal Constitucional.

Da nossa parte, queremos esclarecer que não vamos usar as assinaturas de milhares de pessoas que querem ver esta proposta ir a votos para fins outros; a reformulação sempre foi uma possibilidade do processo que admitimos, mas nunca de tal modo que subverta as intenções da iniciativa e daqueles que a apoiam: devolver as casas à sua função social - serem habitadas. Dizer, também, com clareza, que não há bairros condenados à especulação, que as soluções existem e, havendo vontade política, podem ser implementadas. As zonas de contenção de novas licenças de AL não nos servem para recuperar o tecido social e as casas perdidas para o turismo. É necessário reverter os registos. Qualquer solução que não produza este resultado não é aceitável.

No Movimento Referendo pela Habitação, iremos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para lutar pelo nosso direito à cidade e fazer valer a nossa vontade de sermos ouvidos em referendo. No entanto, sabemos que vai ser muito difícil, porque o Tribunal Constitucional decidiu ser especialmente intransigente com a proposta popular.

Se mesmo após todo o nosso esforço o Tribunal Constitucional continuar a não querer ver o problema de habitação da população, e a não lhe dar voz, o movimento não desiste de lutar. Não podemos esperar mais, precisamos de ser ouvidos, precisamos que as casas sejam para morar.

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