Entrevista a Adelaide Ivanova do Deutsche Wohnen & Co enteignen

Segmento “A Internacional”: Conterrânea (Fanzine do MRH)  

Entrevista a Adelaide Ivanova do Deutsche Wohnen & Co enteignen
 

E: A experiência do Deutsche Wohnen & Co. Enteignen é uma inspiração para ativistas  e militantes um pouco por todo o mundo, quer pela vitória do referendo, quer pela  novidade do instrumento político utilizado. Em Lisboa, o Movimento Referendo pela  Habitação nasceu da influência direta da experiência tida em Berlim. Cidades como  Hamburgo ou, mais recentemente, Florença, desencadearam, também, processos de  referendo local inspirados na vossa experiência.  


E: Como surgiu, em Berlim, a ideia de utilizar o referendo local como instrumento  na luta pela defesa do direito à habitação e à cidade?  


A: Eu não sei quando exatamente nasceu a ideia de usar o referendo como arma para  as demandas, que vieram primeiro, de forma orgânica. Sei como nasceu o que hoje a  gente chama de DWE: um grupo de inquilinos comuns se juntou num pátio nos fundos  de um prédio, em 2015, para tentar se organizar/se defender contra os desmandos do  senhorio deles, e a luta foi crescendo a partir daí, com outros inquilinos da vizinhança  do primeiro, e depois outros, e depois outros. Veja mesmo. De um grupo de meia-dúzia  de inquilinos comuns, até mais de um milhão de apoiadores que votaram pela  expropriação.  


A ideia é simples: usar o artigo 15 da constituição, que nunca foi usado, para expropriar  grandes empresas do aluguel e transformar os edifícios expropriados em moradia social.  O artigo 15 diz “A terra, os recursos naturais e os meios de produção podem ser  transferidos para propriedade comum ou outras formas de gestão comunitária para fins  de socialização por meio de lei que regule o tipo e extensão da compensação. O artigo  14, parágrafo 3, sentenças 3 e 4 se aplicam à compensação em conformidade”.1  


E: De que forma se entendia que a proposta de expropriação e socialização do  parque habitacional das grandes imobiliárias privadas poderia atuar sobre a crise  habitacional de Berlim?  


A: Primeiro por causa da parte prática, que é colocar 240 mil apartamentos de volta ao  campo da moradia social (ou, em outras palavras, retirar 240 mil apartamentos do  mercado imobiliário/financeiro), à disposição de quem mora na cidade, e não à  disposição de acionistas e administradores de fortunas multinacionais.  


Outro exemplo de efeito positivo está relacionado ao “Mietspiegel”2, que calcula o preço  médio do metro quadrado. Como os apartamentos socializados serão alugados não com  objetivo de lucro, podem ser alugados por preços abaixo do mercado, e  consequentemente puxaria o preço do metro quadrado de todos os apartamentos, não  somente os do socializados, para baixo.  


Numa perspectiva mais política, a ideia é tornar uma cidade não-atrativa para os  tubarões do aluguel, desacelerando setores especulativos e de alugueis de curta  temporada, o que também ajudaria sobre a crise habitacional.  

Isso apenas para citar três exemplos! 


E: Em Lisboa, no encontro da Malha Ativista, mencionaste que uma das principais  resistências à campanha da DWE estava na associação da proposta de  socialização a uma ideia de ‘voltar ao muro’. Podes falar um pouco sobre isso? 


A: Existe essa falácia de que qualquer tentativa de regulamentar o mercado de forma  mais efetiva a favor dos pobres, é uma tentativa de voltar ao comunismo, de “subir o  muro de novo”. É uma tática despolitizante, que acaba falando ao coração daqueles que  sofreram na Alemanha Oriental, ou simplesmente àqueles que não simpatizam com  medidas populares, de distribuição de recurso etc.  


Agora, o que é preciso dizer é que, na República Democrática Alemã, havia moradia  digna, acessível e para todos. E o que queremos é, de fato, moradia é digna, acessível  e para todos, mas não o retorno do muro de Berlim.  


E: É curioso porque, em Portugal, há uns meses, quando foi anunciado o Plano +  Habitação - um plano de medidas de ‘suposto’ combate à crise de habitação que,  na realidade, nada altera -, uma das principais resistências foi, precisamente, a  ideia de que certas medidas significariam uma ‘volta ao PREC’. Julgas que  vivemos uma crise de imaginação política? 


A: Acho que vivemos crise de imaginação política, sim, totalmente, mas também uma  fase de muita safadeza retórica. Essas pessoas sabem muito bem que não queremos  voltar para dentro do muro. Mas elas precisam, de alguma forma, criar uma ladainha  política fácil de repetir e que esvazie qualquer conversa séria sobre o sofrimento material  das pessoas.  


Infelizmente a crise de imaginação política também afeta as esquerdas, e os governos  de (centro-)esquerda, mas isso é assunto pra outro dia!  


E: De certa forma, esta dificuldade de pensar alternativas políticas àquelas que já  vivenciamos relaciona-se com a falsa sensação de fim da história. Como é que  iniciativas como a DWE podem contrariar e ultrapassar esta ideia de abismo?  


A: É triste quando até pessoas mais progressistas acreditam e internalizam a mentira  neoliberal de “não há alternativa”. Essa falta de perspectiva pode ser vista quando  governos de (centro-)esquerda acabam aceitando ser apenas gestores de crises,  fazendo não coisas para melhorar a vida das pessoas, apenas controlando para que  não fique pior. Como muito bem diz Vladimir Safatle, no seu livro lindo chamado “A  esquerda que não teme dizer seu nome “, ele diz que “a esquerda deve mostrar que é  capaz de governar sem produzir novas modalidades de sofrimento (...). (...) ela deve  ser, ao mesmo tempo, capaz de sentir o sofrimento social e capaz de ter a inteligência  técnica para resolve-la no cotidiano”.  


Convencer as pessoas que não há nada a fazer já é uma forma de vitória da direita.  Acho que a gente enquanto campanha mostrou que sempre há algo que se possa fazer  quando somos muitos – a vitória nas urnas foi importante demais, mas o maior legado  é o tamanho da mobilização que criamos, os processos de educação política etc. Uma  das coisas que sempre tivemos cuidado foi para não falar de forma derrotista, sempre  fizemos um trabalho de organização comunitária que se baseasse em animar as  pessoas, e não em deixa-las desmotivadas com os desafios que viriam pela frente.  

Acho que a campanha em Lisboa tem esse mesmo potencial! 


E: No encontro em Lisboa, referiste, ainda, que um dos objetivos da campanha da  DWE passava pela desmitificação daquilo que é a luta política, pelo contrariar da  ideia de que tem de ser algo perigoso, arriscado e disfarçado, e que a militância e  o ativismo político podem ser, na realidade, celebração e partilha. Como é que  este objetivo ganhou forma durante a campanha da DWE? 


A: O GT [Grupo de Trabalho] que se foca no direito de moradia de imigrantes teve um  papel fundamental nesse giro. Vindos de culturas menos cínicas e individualistas, esses  inquilinos traziam suas experiencias de lutas no seus países de origem. No sul global e  em alguns países do sul da Europa existe uma forma totalmente diferente de estar junto,  tanto na luta política quanto fora, e esse know-how foi ganhando espaço, devagar,  dentro da campanha.  


Criar condições de que as pessoas se sintam á vontade é fundamental para o  crescimento de qualquer movimento social. Começamos a dar foco nisso em dezembro  de 2020 e de lá viemos trabalhando com cada vez mais seriedade para que a campanha  seja convidativa e calorosa com quem chega, e também um espaço minimamente de  restauro para quem já está na luta há muito tempo.  


Trabalhamos com música, rodas de conversa, práticas com o corpo, encontros para  praticar alemão, exibição de filme, tours históricos pela cidade, visitação a exposições  etc. Isso tudo, claro, sem deixar de lado todas as tarefas militantes e de organização  popular.  


E: No vídeo “Feels like the city’s getting ready to enteignen”, gravado para lembrar  que a expropriação ainda está para ser feita, canta-se “This is our city / Yes, we  keep it cheap and queer”. Podes falar um pouco como a campanha da DWE foi  tecendo alianças e criando intersecções com outras lutas?  


A: Não pode existir construção de poder popular sem trabalho de coalizão. Uma coisa  importante a ser considerada é que nossas alianças devem ser construídas não  somente com outras associações de moradores, ou com estruturas clássicas de luta da  esquerda (como partidos e sindicatos), mas também grupos LGBTQIA+, feministas,  grupos de luta por direito ao voto, grupos que lutam pelo meio-ambiente etc. Porque a  gente entende que todas essas pautas estão interligadas – todas as pessoas precisam  de um lugar para morar, primeiramente e, segundamente, o déficit habitacional vai afetar  LGBTQIA+ de um jeito, mulheres de outro jeito, imigrantes de outro jeito etc.  


E: A proposta de referendo da DWE foi votada a 26 de setembro de 2021 e obteve  59,14% de aprovação. Era um resultado esperado?  

 

A: Era o resultado almejado, mas é claro que tínhamos muito frio na barriga, se ia sair  como esperado ou não. Focamos em conseguir um milhão de votos, trabalhamos muito  para isso, e superamos um pouquinho a nossa própria meta! Eu sabia que ganharíamos,  dada a situação periclitante de Berlim, mas eu sinceramente achava que ia ser uma  vitória mais apertada, não os 59,1% que conseguimos!  

Resultados finais referendo:  

Sim / 1,035,950 Votos / 59,14% 

Não / 715,698 Votos / 40,8%


E: Apesar da vitória, o resultado do referendo não é vinculativo e apenas pode  atuar no sentido de uma maior pressão junto do poder político. Como tem sido o  contacto com as instituições desde a vitória?  


A: Depende de qual instituição a gente for falar. Não existe uma resposta simples e  demandaria uma entrevista só sobre isso! Aqui aproveito a tua pergunta para fazer uma  autocrítica em relação a isso, porque acho que essa autocrítica pode ser útil para a luta  em Lisboa: na minha opinião, depois das eleições, a campanha focou demais na  questão institucional. Saímos das ruas, dos bairros, para focar nas negociações com o  governo, e perdemos fôlego organizativo, mobilizador. Acho que foi um erro tremendo.  Deveríamos ter estado em vigílias, em atos simbólicos, semanais, para não dizer diários,  colocando mais pressão popular ainda depois da vitória. Alguns de nós até sugerimos  isso, mas, também pela própria exaustão do grupo (algo totalmente legitimo, depois de  tantos anos de luta), também se aproveitou a vitória para desacelerar, recarregar as  baterias. Focamos muito no institucional e perdemos um pouco de potência. Espero que  a gente não repita esse erro, futuramente.  


E: O que vem a seguir?  


A: A comissão de especialistas3 irá divulgar o seu resultado final no dia 28 de junho.  Conforme vazou em dezembro de 2022, a comissão já chegou a conclusão de que  expropriar é economicamente viável, e juridicamente legal.4  


A partir dessa divulgação final de junho, ganharemos ainda mais influência, para que o  atual governo escreva a lei de expropriação/compensação/socialização. E caso ele não  cumpra com isso, fica exposto mais ainda o déficit democrático, da cidade em particular,  e da Europa em geral. Nossos próximos passos dependem da ação ou inação do  governo – mas não somente disso. Temos várias coisas que queremos e vamos fazer,  mas eu não posso dizer ainda! Só posso dizer uma coisa: a luta continua, até a vitória.