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Quatro razões que explicam porque a culpa da crise da habitação não é dos imigrantes

Quatro razões que explicam porque a culpa da crise da habitação não é dos imigrantes

  • “A culpa é dos imigrantes, que vêm para cá e nos ficam com as casas!”
  • “Se não fossem os estrangeiros a viver amontoados em casas, as rendas não estavam tão caras!”

Quantas vezes, nas ruas e nas redes sociais, não ouvimos já discursos deste tipo? A narrativa de que os preços da habitação e do arrendamento são hoje tão elevados, principalmente nos grandes centros urbanos, por culpa dos imigrantes é cada vez mais disseminada. Na boca do povo (e de algumas forças políticas), a história é simples e de fácil compreensão: os imigrantes são demasiados, ocupam lugares que não lhes pertencem, constituem um suposto perigo para os vizinhos - e fazem disparar os preços das casas.  

Estas crenças, além de baseadas em falsidades, são perigosas. E facilmente instrumentalizadas por forças que cultivam entre nós o ódio e o ressentimento, com consequências muitas vezes trágicas, dos recentes ataques racistas no Porto até outros episódios que já custaram a vida de várias pessoas imigrantes e racializadas em Portugal.

Para as desmontar, o Movimento Referendo pela Habitação (MRH) reuniu quatro motivos que explicam porque culpar os imigrantes não é a solução para a crise da habitação, mas sim parte do problema.  

1. Pessoas migrantes são vítimas do sistema e não culpadas

As pessoas migrantes são expostas aos mesmos problemas que a restante população – são exploradas nos seus trabalhos, recebem baixos salários e, incapazes de fazer face às rendas atuais, vêem-se subjugados a condições miseráveis e indignas de habitação. Também muitas pessoas nacionais continuam (ou voltaram) a morar na casa de familiares, por não conseguirem suportar o peso das rendas; muitas outras viram-se obrigadas a viver na rua ou em centros de acolhimento. 

À crise habitacional que existe, soma-se a existência de pensamentos xenófobos e racistas, que dificultam ainda mais o acesso de pessoas migrantes a uma habitação. Por exemplo, segundo o Relatório de Diagnóstico de Imigração e Discriminação publicado pela Casa do Brasil de Lisboa no final de 2023 "é no arrendamento (59,6%) que as pessoas imigrantes inquiridas mais percebem a discriminação, sendo a xenofobia (75,2%) a principal forma de discriminação percepcionada". Muitos dos testemunhos relatam senhorios que negam a existência de quartos ou apartamentos livres quando os requerentes são vistos como imigrantes; já quando o mesmo pedido é feito por pessoas lidas como nacionais ou brancas, a situação muda e afinal as casas estão disponíveis.

2. Se existe impacto na habitação por parte de estrangeiros, esse impacto não é o dos imigrantes com menos capacidade económica

Segundo o Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo publicado pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras em 2022, existiam em Portugal 781.915 cidadãos estrangeiros titulares de autorização de residência. A maior comunidade de imigrantes a viver no país vem do Brasil (30%), seguida do Reino Unido (6%). No total, Europa e América são os continentes de onde recebemos mais imigrantes (com cerca de 33-34% do total de imigrantes cada). 

Qual o peso efetivo das pessoas imigrantes na habitação em Portugal? Segundo uma notícia do portal Idealista, "com a queda da compra de casa devido ao baixo poder de compra e os altos juros no crédito habitação (-21,9% de vendas em termos homólogos), as famílias residentes em Portugal têm perdido quota de mercado para os estrangeiros." No caso particular da área metropolitana de Lisboa (AML), a diferença entre o preço mediano de casas compradas por estrangeiros e por pessoas residentes na AML superou os 70%. 

Num outro artigo do mesmo portal, o Idealista argumenta que o impacto dos estrangeiros no preço das casas é limitado; porém, acaba por admitir que "nos últimos anos, observou-se um crescimento significativo do investimento em imobiliário por parte dos estrangeiros: passou de 4% do PIB em 2008 para 13% do PIB em 2022." Estes investimentos vêm maioritariamente de quem tem direitos comunitários, ou seja, cidadania europeia. O restante vem dos chamados vistos gold. Com a criação de outras formas de estadia no nosso país, como os vistos para nómadas digitais, facilitou-se ainda mais a permanência de pessoas com capacidade financeira alta e que suplanta o poder de compra de quem trabalha em Portugal.

Já em 2017, e relativamente ao período de crise 2007–2011, um artigo do Banco de Portugal adiantava que "o crescimento do investimento por estrangeiros em habitação ao longo desse período pode também ter contribuído para (...) evitar uma maior descida dos preços da habitação." Quando sabemos que o investimento estrangeiro em imobiliário desde então mais do que triplicou, não é um salto assumir que há, de facto, estrangeiros a influenciar o preço da habitação. Mas estão longe de ser os imigrantes que vivem em condições de sobrelotação. São antes daqueles que adquirem propriedade a valores 70% mais elevados que a capacidade financeira de nacionais. 

A que estrangeiros se referem os críticos da imigração, que nela colocam as culpas da crise da habitação? Como referimos, há efetivamente imigrantes que conseguem habitação a preços que nós não conseguimos pagar: pessoas com muito maior poder de compra, que entram no mercado habitacional português através dos vistos para nómadas digitais, os vistos gold ou com estatuto de residentes não habituais. Porém, quem usa discursos xenófobos para perpetuar a ideia de competição e falta de casas geralmente refere-se a imigrantes racializados: do Sudoeste Asiático, Médio Oriente, África ou América do Sul. Pessoas que muitas vezes não têm alternativa se não viver em espaços pequenos e em sobrelotação. 

Estas pessoas são obrigadas a viver em sobrelotação porque as casas estão insuportavelmente caras: sofrem das consequências sem constituir as causas. Viver em sobrelotação é uma estratégia de sobrevivência de quem não tem 1.000€ para dar por um T1, ou 500€ por um quarto em Lisboa, e cuja única hipótese é partilhar espaço e renda com muita gente. Estas condições não são condições dignas de habitabilidade que devemos aceitar que existam. A sobrelotação é um dos indicadores de pobreza habitacional, inclusivamente usado pelo Banco de Portugal. 

Os culpados dos nossos problemas habitacionais não são grupos marginalizados, sem alternativa ou capacidade de defesa, que se submetem a condições indignas para ter um tecto; mas sim os senhorios e as políticas predatórias que priorizam o capital em vez de garantir condições mínimas de habitabilidade para qualquer pessoa, nacional ou migrante. 

É preciso também notar que os preços da habitação nunca estiveram tão altos, mesmo se Lisboa esteja, há décadas, a perder habitantes e seja a cidade europeia com mais casas por residente. Ou seja, nós, tanto imigrantes como nacionais, estamos a viver mal, a ser explorados e expulsos da cidade, embora haja casas de sobra para toda a gente. Não existe “excesso de procura” por imigrantes que querem de facto cá ficar a viver e trabalhar. O que há é excesso de investidores imobiliários e consumidores que não vêm para ficar, para trabalhar e contribuir, e que usam as casas para especular ou turistificar.

3. Os imigrantes contribuem, e muito, para a riqueza cultural e económica do país

Os ataques que são dirigidos às populações migrantes não só não têm em consideração que viver em sobrelotação não é uma ameaça, como não reconhecem que a presença destas pessoas no nosso país contribui fortemente para o nosso tecido cultural e social. 

Apesar de muitos deles terem vínculos laborais precários, ou estarem em situação de irregularidade ou em limbos burocráticos (o que diz mais sobre os ‘patrões’ e o nosso sistema de acolhimento do que sobre os trabalhadores), pagam impostos e todos os anos as contribuições de pessoas imigrantes para a segurança social batem novos recordes. Sabemos também que estas pessoas contribuem bem mais do que recebem e têm uma capacidade contributiva maior do que os cidadãos nacionais.

4. A migração faz parte da humanidade e sempre fez parte da realidade portuguesa

A movimentação geográfica e a busca de melhores condições de vida fazem parte da vida humana. E os portugueses não são excepção. Quer seja pela fuga a condições de vida difíceis, para procurar segurança ou liberdade, para fugir à guerra ou procurar melhores condições de trabalho, ao longo dos anos os portugueses também emigraram - e continuam a emigrar. É normal que haja outras pessoas que procurem o nosso país com os mesmos objetivos que nós procuramos outros países, ou mesmo outras cidades dentro do nosso país. É natural procurar outros lugares em que pensamos vir a ser mais felizes ou conseguir viver melhor.

Se pensarmos no caso português, quando no século passado milhares de pessoas emigraram para França, Luxemburgo, Suíça, as suas condições à chegada não eram dignas e muitas pessoas se subjugaram a situações em que vemos (e não é de agora) pessoas a viver no nosso país. E não foram essas condições que nos fizeram desistir de emigrar, pois sabíamos que cá era pior. 

Apesar de, felizmente, a situação nacional ter mudado, ainda há variados motivos que fazem com que Portugal seja o país da Europa com maior taxa de emigração (15% da população nacional) e o oitavo a nível mundial. 

Nomear as causas, resolver os problemas

Criar bodes expiatórios é útil para os poderosos: serve a velha máxima do dividir para conquistar. E as crises económicas são tempos de fomento de divisões. Assim, tornam-se em crises sociais, onde os que têm pouco competem entre si pelas migalhas daquilo que deveria ser seu por direito. As fábulas multiplicam-se: um grupo étnico que supostamente tem primazia na habitação social, estrangeiros que supostamente entopem os serviços ou ‘roubam’ casas e trabalhos.

Na verdade, os imigrantes pobres são parte da população sem-abrigo ou vivem em casas sobrelotadas ou mesmo insalubres que mal conseguem pagar. Como os nacionais, integram, jovens, a força de trabalho, descontam para a Segurança Social e batalham para pagar as contas ao fim do mês e, especialmente, rendas incomportáveis. Culpar um grupo marginalizado, que não tem poder no mercado, pela crise na habitação, não só é desonesto como também tem outro motivo: catapultar a influência que partidos e forças extremistas têm, infiltrando pensamentos racistas e xenófobos na população.

Quem aumenta os preços das rendas são os senhorios. E aumentam porque estão em total controlo da situação: eles é que têm as casas que nós precisamos. Associações como a ALEP (Associação do Alojamento Local em Portugal) ou a CPP (Confederação Portuguesa de Proprietários) apenas servem para criar espaços em que estes proprietários se reúnem e comunicam entre si os preços praticados, articulam os seus movimentos e fazem pressão política sobre as instituições. Assim, mantêm o poder que têm sobre o estado da habitação. E é por isso também que partidos de direita não só apoiam associações como estas, como papagueiam os seus argumentos. Nada mais é que uma forma de manter o capital sempre nas mesmas mãos, e o poder nos mesmo grupos.

Não podemos permitir que nos apresentem bodes expiatórios para um problema cuja causa conhecemos: a especulação imobiliária. Sabemos o que é preciso mudar. E sabemos o que queremos: que se cumpra o direito à habitação para todos.

 

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